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O Gabinete do Ódio do PT: Pioneiros em Guerrilha Online no Brasil

Mais de uma década atrás, o Partido dos Trabalhadores desenvolvia no Brasil diversas técnicas de propaganda em redes sociais, que incluíam o assédio coordenado a veículos e usuários que publicassem notícias adversas ao partido e o impulsionamento de notícias, memes e outros conteúdos de propaganda, tudo de forma sistematizada e com uso de militância treinada especificamente para isso.

Os tempos eram outros e não havia ainda na sociedade brasileira o sentimento de escândalo hoje causado pelo uso das redes sociais para a guerrilha política. A imprensa apontava os abusos e o TSE não ficou inerte, mas a reação da sociedade e das instituições foi uma sombra do que se vê hoje contra os novos protagonistas do campo de batalha virtual. 

Para demonstrar que reação à guerrilha online petista era muito menor do que o Leviatã que se ergueu contra seus sucessores bolsonaristas, basta uma simples comparação: ao passo em que o PT anunciava publicamente o investimento em seus núcleos de Militância em Ambientes Virtuais — ou MAV —, com treinamento em massa de militantes, palestras de líderes partidários e outras ações de promoção de suas investidas online, hoje todos os partidos e candidatos evitam assumir publicamente que promovem qualquer ação coordenada nas redes, e mesmo apoiadores individuais e anônimos têm medo de sofrer sanções as Big Tech que controlam as redes ou mesmo da Justiça.

O PT hoje não fala mais em MAV, mas ainda há vestígios na internet de suas atividades, além das matérias de imprensa que trataram do tema. O site do deputado Zeca Dirceu, por exemplo, ainda exibe uma convocação do partido, de outubro de 2011, para uma “interação ao vivo” com Renato Simões, então secretário nacional de Movimentos Populares e Políticas Setoriais do PT. A convocação informa que “O tema proposto para o debate é a resolução sobre implantação de núcleos de militantes virtuais, aprovado (sic) pelo Partido”.

A resolução a que a convocação se refere foi aprovada pela Executiva Nacional do PT no  IV Congresso Nacional do partido, em setembro de 2011, e contém duas determinações:

  1. Mandatar as Secretarias Nacionais de Comunicação e de Movimentos Populares para apresentar ao próximo Diretório Nacional projeto de resolução sobre a implantação dos Núcleos de Militantes Petistas em Ambientes Virtuais (MAVs);
  2. Convocar, ainda neste ano de 2011, uma primeira Plenária Nacional de Militantes Petistas em Ambientes Virtuais, em data a ser definida, utilizando para tanto as ferramentas tecnológicas que lhe assegure abrangência nacional.

O PT não perdeu tempo em implementar o projeto. Ainda em novembro daquele ano, a mais alta cúpula do partido já estava engajada, como se vê em outra convocação, que transcrevo aqui: “Esta semana será movimentada para os petistas internautas. Na quarta, quinta e sexta-feira desta semana o presidente do PT, Rui Falcão; o secretário nacional de comunicação do PT, André Vargas; e o secretário nacional de movimentos populares, Renato Simões; estarão ao vivo na internet para debater sobre a criação dos Núcleos de Militantes Petistas em Ambientes Virtuais (MAV).” Note-se que, segundo O Globo, os núcleos de MAV já existiam desde 2010, tendo sido apenas formalizados no congresso de 2011.

PT convoca a militância para o combate online.
PT convoca a militância para o combate online.

O projeto não passou despercebido. Em outubro de 2011, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre a estratégia do PT, em que afirmava que “O partido quer promover cursos e editar um ‘manual do tuiteiro petista’, com táticas para a guerrilha na internet. A ideia é recrutar a tropa a tempo de atuar nas eleições municipais de 2012.” O Globo, por sua vez, aponta ter tido acesso ao manual, que seria, “uma cartilha petista para atuação virtual. Orienta o militante a multiplicar o conteúdo, alterando a forma de apresentação. Não basta, assim, copiar e colar a propaganda oficial”.

Em janeiro de 2012, Reinaldo Azevedo publicou um artigo na Veja em que descreve o real objetivo da MAV petista:

Trata-se de um grupo organizado pelo partido para policiar a rede. É por isso que os “defensores do PT e do governo” estão em todos os portais, sites noticiosos, blogs e redes sociais. Seu interesse, obviamente, não é levar informação a ninguém. Como deixa claro a sua carta de intenções, o objetivo é combater “as mentiras e armações da oposição”. Entenda-se: “mentiras e armações” são todas as informações e opiniões de que eles não gostam. Já as coisas de que gostam são, naturalmente, “verdades e revelações”.

–Reinaldo Azevedo descreve os núcleos de MAV.

Reinaldo Azevedo diz ainda que “A oposição é apenas um de seus alvos. O outro é o jornalismo independente” e que, muito além da mera militância de base, “Na Internet, no jornalismo impresso e também na TV, ex-jornalistas tiveram a pena alugada pelo petismo para agredir lideranças da oposição e, ainda com mais energia, a imprensa. Tentam desacreditá-la para dar, então, relevo às verdades do partido.” 

Mais do que isso, o PT estaria alavancando suas ações de propaganda política com uso de dinheiro público canalizado para blogues e jornalistas amigos, conforme explica Azevedo:

Essas publicações — blogs, sites e revistas sustentados com dinheiro dos cidadãos — formam uma espécie de central de produção de difamações que a tal “MAV” vai espalhar pela rede. O núcleo mais forte está em São Paulo, mas o próprio partido anuncia que está criando outros país afora. Assim, meus caros, já não se pense mais no PT como o partido que aparelha apenas sindicatos, movimentos sociais, ONGs, autarquias, estatais, fundos de pensão e, obviamente, o estado brasileiro. Não! Os petistas decidiram aparelhar também a Internet.

–Reinaldo Azevedo sobre a estratégia online do PT.

A militância online passou a fazer parte permanente da estratégia partidária.

Com o tempo, o uso de militantes online deixou de ser enfatizado pelo partido, mas não desapareceu. O PT continuou investindo na formação da militância e em sua capacitação para atuar em plataformas digitais. Em 2014, chegaram a montar um acampamento em São José dos Campos, ao custo de R$ 400 mil, para treinar cerca de 2 mil militantes em técnicas variadas, entre as quais, “como usar um editor de imagens”, “como formar e articular redes”, “fotografia para o ativismo”, “como fazer seu blog acontecer” e “meme, como fazer um viral”, segundo levantou o Estadão.

Embora formalizado e tornado público em 2011, há informações sobre atividades de desinformação online em favor do PT desde ao menos 2010, embora talvez não adotada pelo partido como estratégia formal, como no caso da MAV.

Em 2018, a BBC publicou resultado de investigação que mostrava como uma rede de perfis falsos era usada para promover a campanha de Dilma Rousseff à Presidência da República, ainda em 2010. Um dos exemplos usados pela BBC para mostrar como funcionava o esquema é um blogue de Armando Santiago Jr., ou “o companheiro Armando”. Seu blogue se chamava “Seja Dita a Verdade” e era usado para promover a candidatura da petista, defendê-la de críticas e atacar José Serra, seu oponente na disputa. Ocorre que, segundo a BBC, Armando “nunca existiu. Seu blog e seus perfis no Orkut e no Twitter eram administrados por quatro pessoas que teriam recebido, para tanto, de R$ 3,5 mil a R$ 4 mil mensais entre maio e outubro de 2010”.

“Embora a maior parte das publicações [do blogue Seja Dita a Verdade] fosse de ataques a Serra ou de checagem de fatos sobre Dilma, os entrevistados pela BBC Brasil admitem que chegaram a produzir também notícias falsas. Uma publicação do dia 6 de outubro de 2010, por exemplo, informa que o Vaticano estava discutindo ‘excomungar José Serra’”, relatou a BBC.

O trabalho subterrâneo realizado em favor do PT era feito de forma planejada e buscava-se não apenas dissimular a desonestidade dos perfis usados, como também fazê-los parecer representativos da diversidade do eleitorado brasileiro. Assim, “os coordenadores exigiam que os usuários falsos tivessem perfis demográficos variados, com classe, profissões, origem e estilo distintos e plurais […]. O objetivo seria manter uma ampla gama de perfis que apoiassem Dilma, com o objetivo de interagir com diferentes comunidades de forma atrativa para elas”.

O PT foi pioneiro na guerrilha digital no Brasil.
O PT foi pioneiro na guerrilha digital no Brasil.

Hoje o ambiente mudou. Há maior pressão da sociedade e da Justiça contra o uso de técnicas de desinformação e métodos fraudulentos de interação nas redes. Em muitos casos, o ímpeto corregedor é tão intenso que extrapola seus objetivos, alcançando cidadãos que exercem seu direito legítimo de participar do debate público e de expressar suas opiniões em redes sociais.

Nesse novo cenário, não apenas o PT como nenhum outro partido faz propaganda de seus próprios métodos de propaganda, como o Partido dos Trabalhadores fazia. Isso não quer dizer que não existam operações de desinformação em andamento, com diferentes graus de coordenação, promovidas por políticos e grupos de interesse. Ao contrário, com a importância crescente das redes sociais na formação da opinião pública e, por consequência, das intenções dos eleitores, é de se esperar que diversos agentes políticos buscarão usar de quaisquer meios para influenciar o fluxo de informação na internet.

Houve, ainda, nos últimos anos, outro importante desdobramento. Até recentemente, o PT e seus satélites de esquerda dominavam, de forma ostensiva ou dissimulada, a comunicação nas plataformas digitais. E usavam perfis fraudulentos e outros artifícios para desvirtuar o debate. A imprensa apontava abusos, a Justiça Eleitoral investigava denúncias, mas punições efetivas eram rarefeitas. 

Tudo mudou depois que o clã Bolsonaro dominou as redes sociais, superando o PT em capacidade de mobilização e de formação de tendências —de fato, muitos avaliam que foi justamente sua capacidade de mobilização online um dos fatores determinantes para a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018—. A grande imprensa e a Justiça passaram a tratar do problema com um nível de preocupação não visto antes. Investigações sobre fake news surgiram aos montes nos jornais e nas cortes, militantes e blogueiros passaram a ser desmonetizados, banidos das redes sociais e mesmo presos. Acima de tudo, o próprio presidente e seus colaboradores são acusados de coordenar um “Gabinete do Ódio” de dentro do Palácio do Planalto. Não é pouco!

Vejam, não aprovo qualquer dessas atividades, tanto as propagandeadas pelo PT como as imputadas ao presidente Bolsonaro e seus apoiadores, mas não posso deixar de perceber a diferença de tratamento dispensado ao tema depois que Bolsonaro foi eleito. A militância online de ontem, mesmo que estabelecida oficialmente por um partido político e usada abertamente para atacar adversários e espalhar “memes” nas redes, era tratada como desvio ou trapaça; a de hoje, cuja existência é em grande medida presumida, é um “Gabinete do Ódio” e os esforços empreendidos para sua supressão chegam a amedrontar usuários ordinários das redes sociais, que temem ser banidos das plataformas —ou mais!— por “subir hashtags”, repassar notícias duvidosas nas quais, via de regra, acreditam, ou opiniões com que concordam.

*Este artigo apareceu originalmente na 9a edição da newsletter Fuga para a Realidade.

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