Toda a obra de Paulo Freire gravita em torno de um objetivo central: a revolução socialista. Do seu trabalho inicial na alfabetização de adultos aos últimos escritos e palestras, tudo que Freire propôs tem como referência a revolução. Tão importante é a revolução no projeto pedagógico freiriano de “transformação social” que ele o divide em duas etapas históricas, a que correspondem duas estratégias complementares: ação cultural e revolução cultural. E o que as separa é justamente a ocorrência da revolução socialista.
Para Freire, colaborar com a educação como ela existe na sociedade “burguesa” é colaborar com a continuidade da sociedade que ele deseja ver destruída. A ação cultural, portanto, tem caráter subversivo, não contra um governo específico, mas contra todo o edifício civilizacional existente, julgado por Freire como opressor e incorrigível.
Para conduzir a sociedade até a revolução, Freire prescreve ferramentas e estratégias para um lento e persistente trabalho de “conscientização” ideológica das massas, por meio da educação e de outros mecanismos culturais. Nesse projeto, que visa abarcar toda a cultura, Freire dedicou-se à educação e desenvolveu um sistema pedagógico que buscar incutir nos alunos o ímpeto de lutar ativamente pela revolução.
Simultaneamente, Freire instiga os convertidos — especialmente professores, mas não apenas eles — a militar pela causa. “De quem é essa […] tarefa de denunciar a ideologia dominante e sua reprodução? É do professor, cujo sonho político é a favor da libertação”, declara. Freire defende, ainda, que não apenas a militância é necessária em nível pessoal, mas precisa estar integrada em uma estratégia de ocupação de espaços de inspiração gramsciana, e afirma que “cabe àqueles cujo sonho político é reinventar a sociedade ocupar o espaço das escolas, o espaço institucional, para desvendar a realidade que está sendo ocultada pela ideologia dominante, pelo currículo dominante”.1
E a conciliação da militância individual com a estratégia de ocupação de espaços deve ser apoiada pelo que Freire chama de “mapa ideológico”, que consiste em “conhecer os diferentes departamentos da faculdade, o diretor da faculdade e sua abordagem, sua compreensão de mundo, sua posição ideológica, sua opção. Precisamos conhecer os professores dos diferentes departamentos. É uma espécie de pesquisa. Chamo isso de fazer um ‘mapa ideológico’ da instituição”. Assim “começamos a conhecer as pessoas com quem podemos contar”. Ao recomendar o mapeamento ideológico da instituição, Freire esclarece que “você tem que saber com quem pode contar e contra quem tem que lutar. Na medida em que você saiba isso, mais ou menos, pode começar a estar com e não estar só. A sensação de não estar só diminui o medo”.2
Doutrinação ideológica, reprodução e multiplicação da militância socialista, atenuação da resistência ao projeto revolucionário. Eis os principais objetivos do sistema pedagógico freiriano.
Uma vez tomado o poder, a ação cultural imediatamente se transforma em revolução cultural, cujo objetivo prioritário deixa de ser a subversão da ordem vigente e torna-se a defesa do novo Estado socialista. “Na nova sociedade”, diz Freire, “o processo revolucionário se transforma em revolução cultural”. E continua:
[…] vamos esclarecer as razões por que vimos falando de ação cultural e revolução cultural como momentos distintos no processo revolucionário. Em primeiro lugar, a ação cultural para a liberdade é realizada em oposição à elite dominante no poder, ao passo que a revolução cultural acontece em harmonia com o regime revolucionário […]3
Para isso, às tarefas anteriores, realizadas na ação cultural, incorporam-se os objetivos de extirpar qualquer traço da cultura antiga, consolidar revolução e criar o “novo homem” socialista. Freire explica que “Depois que a realidade revolucionária é inaugurada, a conscientização continua a ser indispensável. Ela é um instrumento para expelir os mitos culturais que permanecem nas pessoas, apesar da nova realidade”.4 E explica que “O homem novo e a mulher nova não aparecem por acaso. O homem novo e a mulher nova vão nascendo na prática da reconstrução revolucionária da sociedade”.5
Em suma, o que Freire propõe é um processo de preparação cultural que conduzirá a sociedade a uma revolução socialista, em que se instalará uma ditadura do proletariado. Isso não está em desacordo com o que Freire declara a respeito de liberdade e democracia, que, refletindo o pensamento leninista, têm significados diferentes dos utilizados no discurso político contemporâneo. Para Freire, a verdadeira liberdade é impossível antes da revolução, pois a sociedade capitalista não apenas oprime, mas é deliberadamente estruturada para manter as massas oprimidas. A democracia burguesa é, para Freire assim como para Lenin, uma farsa, sendo a verdadeira democracia aquela que emana da Revolução.
* Este artigo também está disponível em meu Substack.
- Medo e Ousadia, p. 67. ↩︎
- Ibid. p. 106. ↩︎
- The Politics of Education, pp. 89-90. Tradução minha. ↩︎
- Ibid. p. 87. ↩︎
- A Importância do Ato de Ler, p. 99. ↩︎
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