Artigos e Ideias

A Era dos Inconsequentes

Vemos já há algumas décadas ganhar cada vez mais visibilidade um tipo de pessoa pública* que defende as ideias mais estapafúrdias, mais descoladas da realidade que se pode imaginar — ao menos da perspectiva de pessoas ancoradas na realidade. O único teste de validade dessas ideias é que demonstrem as boas intenções de seus defensores. Esse fenômeno tem sua manifestação mais visível no que passou a ser descrito no Brasil como “lacração” (algo semelhante, mas não idêntico, ao que se chama de “wokeness” nos Estados Unidos), embora a lacração seja apenas o chorume do verdadeiro lixo ideológico que alimenta essas pessoas.

Lacradores são normalmente bobalhões que seguem modismos ou oportunistas que buscam se promover às custas de bobalhões. As ideias extravagantes não se originam neles. Elas vêm de dois tipos de indivíduos, poucos dos quais compreendem o real conteúdo e as consequências das ideias que propõem. Esses poucos muitas vezes as defendem não por sua qualidade ou veracidade, mas pela capacidade que elas têm de contribuir para seus objetivos políticos e ideológicos. Os demais são apenas repetidores do que é proposto por aquele pequeno grupo, e o fazem por razão diversa: enquanto aqueles as propõem para manipulação política (em geral com ímpeto revolucionário), estes as ecoam por satisfação psicológica.

Quanto às ideias, tratei e tratarei delas em outros lugares.

Ocupo-me aqui dos repetidores, cujas fileiras são compostas por intelectuais, professores, jornalistas e a classe amorfa de “influenciadores” que se entusiasmam com explicações “woke” sobre a sociedade e que se esforçam para aderir e demonstrar aderência a causas vistas como progressistas. Quero argumentar que muitos deles não estão propriamente, intimamente, sinalizando virtude, no sentido de estar deliberadamente buscando demonstrar sua qualidade ética.

São, na verdade, indivíduos de capacidade intelectual inferior que desejam estar do lado certo de um debate que não compreendem. Não são, portanto, intelectualmente desonestos, mas intelectualmente insuficientes, o que, potencializado por traços psicológicos característicos, torna-os caixas de ressonância de ideias e tendências do momento — não quaisquer ideias, mas apenas aquelas que pareçam trazer alguma inovação de importância fundamental para a humanidade, o que lhes dá a sensação de embarcar no trem da história e, mais, de alguma forma, conduzi-lo. O único teste de validade, como apontei acima, é o “ficar bem na foto”. Incapazes de pensar por si próprios e motivados por orgulho e ambição vulgares, teriam em outras épocas, passadas ou futuras, adotado a mesma postura arrogante e mesquinha que adotam na nossa, apenas trocadas as bandeiras que defendem.

Não se pode culpá-los. São fruto de um período intermediário do desenvolvimento civilizacional do Ocidente, em que as massas se ergueram da lama em que o subdesenvolvimento histórico as esmagava, sem ainda ter alcançado a elevação prometida pelo progresso econômico e social continuado.

Uma parte dessas massas, ora tornada em classes pseudoletradas, encontra-se confundida entre sua elevação parcial da ignorância milenar da humanidade e a percepção que têm de si mesmas como distintas e superiores ao que ainda não se tornaram. São beneficiárias de um avanço civilizacional que não compreendem e contra o qual se revoltam, como adolescentes que jamais serão adultos e que exigem o direito de impor aos adultos sua visão pueril e seus desejos imaturos.

O maior risco que o Ocidente enfrenta neste período histórico não é a competição de alternativas civilizacionais como o Islã ou a China, mas os efeitos dessa transição qualitativa de suas populações. Entre uma sociedade conduzida por uma pequena elite de sábios e aristocratas e uma sociedade futura e hipotética em que uma verdadeira democracia terá florescido — uma democracia profunda e completa em que todos ou a maior parte dos indivíduos terão não somente o direito de se manifestar mas os instrumentos para contribuir —, o Ocidente atravessa um período longo, turbulento e perigoso, em que os que abriram um olho são multidão e, convencidos do alcance de sua visão, se atropelam para suprimir quem tem os dois olhos abertos. E estes, temerosos e cansados, sem esperança de refrear as hordas que avançam contra o que não conhecem e o que não compreendem, desesperados das multidões que precisariam combater, declaram cidade aberta toda a fortaleza civilizacional lentamente construída, entregando-a aos novos bárbaros precariamente ilustrados que ela mesma produziu.

*Aqui talvez fosse possível dizer intelectual orgânico, no sentido gramsciano.

**Este artigo foi publicado originalmente em minha newsletter.

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