Artigos e Ideias

Fragmentação Social e Controle do Discurso: um ensaio sobre o uso de causas sociais para a promoção de narrativas

Um dos objetivos centrais da guerra cultural empreendida pela esquerda política no Ocidente é a busca do controle do debate público. O domínio sobre o discurso, sobre o que pode ou deve ser dito, o que, em última instância, pode ser pensado, é estratégia por trás de uma série de fenômenos aparentemente independentes, mas que concorrem para a imposição de um ambiente social e intelectual em que a liberdade de expressão se torna um direito assimétrico. Essa estratégia consiste principalmente na promoção, de forma simultânea, de dois movimentos que se complementam e reforçam, e que têm por objetivo declarado promover e proteger minorias e indivíduos vulneráveis. O primeiro é a fragmentação de grupos e identidades. O segundo, o policiamento do discurso propriamente dito, muitas vezes inadvertidamente auto-imposto.

O primeiro movimento apoia-se no incentivo à divisão da sociedade em segmentos cada vez mais particulares, estimulando a multiplicação de “identidades” crescentemente idiossincráticas, definidas por incontáveis combinações de interesses ou características pessoais, que podem referir-se não apenas a raça, sexo, orientação sexual, como ainda a afinidade com grupos ou movimentos ideológicos e “culturais” ou a qualquer outro critério identitário auto-declarado. A cada um desses segmentos outorga-se o estatuto de vítimas de alguma ofensa perpetrada por agente difuso, como a sociedade, o capitalismo, o patriarcado, o legado histórico, o privilégio branco, etc. E esses grupos serão tão mais protegidos quanto maior for sua aparente oposição ao que seria a “identidade” das classes dominantes e opressoras, e quanto mais desafiarem os valores e tradições sociais majoritários.

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O segundo movimento busca criminalizar a circulação de ideias que contradigam as posições e demandas dos grupos protegidos. Isso é operado indiretamente, por meio da imposição de restrições à liberdade de expressão dos demais membros da sociedade, com base na doutrina de correção política e em diversos outros mecanismos de cerceamento do discurso, como “espaços seguros”, assédio a quem se manifesta de forma “imprópria” sobre temas sensíveis, ameaça de “cancelamento”, entre outros.

Esses mecanismos aproveitam a fragilidade e infantilização de largos segmentos da sociedade para, em nome de sua suposta proteção, suprimir a manifestação de argumentos que desafiem posições politico-ideológicas protegidas. Qualquer pessoa que se auto-identifique como membro de grupo minoritário ou “vulnerável” e tenha suas opiniões ou posições confrontadas pode não somente alegar ser vítima de agressão como também invocar uma multidão raivosa para atacar e, se possível, destruir o suposto agressor. Em sentido inverso, membros desses grupos gozam de ampla tolerância para assediar, ofender e perseguir seus desafetos. Sob a justificativa de proteger os sentimentos e suscetibilidades de pessoas frágeis ou vulneráveis, cerceia-se a expressão de adversários e opositores. Apenas a expressão de opiniões que reforçam a narrativa “progressista” é válida.

Como parte da estratégia, procura-se confundir essa imunidade estendida ao discurso minoritário com a proteção de direitos e garantia da liberdade de minorias. A proteção de minorias, em uma sociedade democrática, visa impedir que tenham seus direitos e liberdades limitados por decisões majoritárias. Isso não equivale a garantir a grupos minoritários o direito de exigir a satisfação de todas as suas demandas, por mais injustificadas ou irrazoáveis que sejam, sem que se possa sujeitá-las ao escrutínio de outros segmentos da sociedade. O objetivo por trás desses movimentos, portanto, não é proteger minorias ou garantir-lhes a liberdade de agir e de optar pelo estilo de vida que desejarem, mas impedir a sociedade de alcançar um nível mínimo de harmonia sobre valores, regras e objetivos comuns.

Assim, vivemos dois processos simultâneos de degeneração civilizacional. Por um lado, observamos a dissolução do tecido social causada pela pulverização das demandas em uma infinidade de pequenos grupos de identidade ou interesse, em grande parte antagônicos entre si. Por outro lado, testemunhamos a imposição de limitações à capacidade e à liberdade de criticar qualquer demanda desses grupos, por mais absurda que seja, o que reforça e consolida divisões na sociedade.

Essa desagregação não pode servir ao interesse da sociedade em seu desenvolvimento como organismo evolutivo, fundado na experiência compartilhada e na sabedoria acumulada através das gerações, pois significa a subordinação da hierarquia tradicional de valores a qualquer valor do momento, desde que defendido por grupos ideologicamente legitimados e imunes a contestação. Qualquer capricho passa a ser tratado como superior a tradições e consensos seculares. Os valores compartilhados historicamente pela maioria são rejeitados como símbolos de opressão e as demandas mais casuísticas são apresentadas como avanços humanos inadiáveis. Assim, a discórdia e a desagregação são incentivadas e protegidas, enquanto as tradições e os valores caros à maioria e testados pelo tempo são tratados como descartáveis e até nocivos.

Esse estado de coisas só pode servir a ideologias revolucionárias, a projetos de poder que almejam destruir a sociedade como ela existe e substituí-la por outra, que tampouco será ordenada pelos valores e objetivos defendidos por cada um dos grupos que ora a almejam, pela simples impossibilidade de conciliar todas as demandas e porque nenhuma sociedade é estável, no longo prazo, se a minoria determina o comportamento da maioria. Tal conjuntura só pode persistir em ditaduras ou em períodos pré-revolucionários. Uma vez destruído o sistema, todas as promessas serão revistas e os grupos de interesse atuais serão obrigados a se conformar à nova ordem, qualquer que seja.

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