Artigos e Ideias

Comentários do Sleeping Giants Brasil ao artigo “A Desmonetização pelo Medo”

Em meu artigo “A Desmonetização pelo Medo”, descrevo a forma como os ativistas responsáveis pelo Sleeping Giants Brasil atuam para tentar sufocar empresas que julgam propagadoras de fake news ou de outros conteúdos nocivos. Em meu texto, busquei mostrar, em linhas gerais, a estratégia adotada pelo grupo, que pressiona empresas terceiras —os anunciantes— para causar dano a seus verdadeiros alvos. Talvez mais importante, apresentei algumas considerações sobre como essa forma de ação cerceia a liberdade dos anunciantes, o que chamei de chantagem, e preocupação sobre essa forma de se fazer “justiça” contra supostos malfeitores.

Membro do Sleeping Giants Brasil leu meu artigo e prontificou-se a prestar informações adicionais relacionadas às críticas que fiz. Ele mesmo selecionou alguns trechos de meu artigo e os comentou. Como tudo foi feito em uma série de comentários no LinkedIn, achei que tornaria mais clara a leitura se consolidasse tudo em um texto único. Isso também torna mais fácil sua transposição para outras plataformas onde o artigo original também foi publicado. O conteúdo está organizado assim: citação do artigo original, seguida dos comentários do Sleeping Giants Brasil e de minhas réplicas.

Photo by Pressmaster on Pexels.com

Artigo original. O primeiro alvo do organizador brasileiro foi o Jornal da Cidade Online, cujo crime seria propagar desinformação (e apoiar o governo?). 

Sleeping Giants Brasil. [Jornal da Cidade Online usa perfis apócrifos para atacar políticos e magistrados]

Cesar Nascimento. Consigo imaginar várias razões que levariam alguém a não revelar sua identidade nos conteúdos que publica, tanto para os autores dos artigos do Jornal da Cidade Online como para os responsáveis pelo Sleeping Giants Brasil, cujos organizadores permanecem anônimos. De todo modo, usei como exemplo o Jornal da Cidade Online por ter sido o primeiro alvo do SGB, havendo mais informação e repercussões observáveis. O objeto de meus comentários, como se pode verificar no meu artigo, não é defender essa ou qualquer outra publicação, mas criticar a forma como se procura atacá-las e suas consequências.

Inúmeras capturas de tela mostrando anúncios no site do jornal assediado foram publicadas no Twitter e os anunciantes marcados nas postagens, com mensagens instando-os a remover seus anúncios.

SGB. Recebemos diversos “não” como resposta a tais pedidos, aceitos de bom grado, pois se vale a livre expressão na cobrança, vale também a livre iniciativa na negativa, ambas princípios constitucionais vigentes.

CN. Acho louvável que não tenham perseguido os anunciantes que se recusaram a desmonetizar os sites-alvo, mas, como procurei mostrar no artigo, o próprio método utilizado para pressionar inicialmente os anunciantes causa-lhes constrangimento e os deixa diante de alternativas com custos assimétricos, o que cerceia sua liberdade de decisão.

O problema é que, com estratégia adotada pelo militante anônimo e nas circunstâncias sociais prevalecentes, nem todos os envolvidos podem agir com liberdade. O acusador tem liberdade de acusar seus adversários e dar instruções a seus seguidores, e estes têm liberdade de segui-las ou rejeitá-las. Mas a liberdade que os anunciantes chantageados1 têm para decidir o que fazer é limitada. Isso ocorre porque para o anunciante os custos de cada alternativa são assimétricos, favorecendo a pronta deferência à intimidação, independentemente da justiça da acusação.2 

SGB 1. Nos parece exagerado chamar de chantagem simples menção a empresas e indivíduos em redes sociais abertas, contendo pedido e/ou sugestão que o recipiente não tem a menor obrigação de responder ou aceitar.

CN. Como apontei acima e no artigo original, os anunciantes não têm completa liberdade de decidir, pois são confrontados com alternativas assimétricas e instados a manifestar-se publicamente diante de uma audiência militante. Usei chantagem como analogia porque o anunciante é pressionado adotar a ação demandada por vocês, sob pena (percebida ou real) de sofrer danos financeiros e de imagem. Não é chantagem com dossier na gaveta, claro, mas a relação entre as partes é muito similar.

SGB 2. A nossa campanha é puramente informativa, a grande maioria dos anunciantes desconhece o recipiente dos seus anúncios por conta da particularidade da distribuição de publicidade programática e, quando descobrem, geralmente optam por retirar o anúncio. Isto inclusive por razões de custo-benefício, pois uns destes veículos/alvos se utilizam de sistemas de automação para aumentar as visitas e cliques em anúncios e, por consequência, a sua monetização.

CN. Acredito que muitos anunciantes ficarão gratos por vocês terem apontado sites que eles também consideram impróprios, mas muitos outros se sentirão desconfortáveis e sob pressão indevida. Como afirmei no artigo, não sou contra o direito de vocês pedirem a anunciantes que removam seus anúncios, mas ao mesmo tempo preciso apontar as consequências que essa abordagem tem sobre a liberdade dos anunciantes e minha preocupação com as consequências que a disseminação dessa forma de militância pode ter para a sociedade. Os efeitos positivos são fáceis de enxergar, mas os há também negativos. E se vocês querem fazer uma campanha “puramente informativa”, por que não fazem recomendações diretamente aos anunciantes, sem os colocar no palanque? Poderiam depois louvar publicamente aqueles que cooperaram e ignorar os que se recusaram a acatar suas recomendações.

Como essa assimetria funciona? É simples. O movimento militante, ao ameaçar atacar publica e persistentemente uma empresa anunciante (observe que a empresa que sofre o ataque não é o adversário real ou “alvo”, mas a empresa que anuncia no site do alvo e que, portanto, contribui para sua monetização), mostra-se capaz de gerar impacto negativo sobre seu faturamento e causar danos a sua imagem, ao insinuar que ela endossa o comportamento imputado (com ou sem justiça) ao verdadeiro alvo. Essa situação é assimétrica porque, embora a maioria dos clientes da empresa anunciante não sejam membros do movimento ativista, tendem a ser indiferentes a que o site alvo seja penalizado. 

SGB. Sim, empresas, marcas e anunciantes que financiam direta ou indiretamente a desinformação são corresponsáveis por associação, porém nenhuma ou quase nenhuma decide por continuar fazendo após avisadas, apesar de serem completamente livres para fazê-lo.

CN. Mais do que apenas se arrogar autoridade para julgar que um “alvo” é culpado de “desinformação” (esqueçamos o Jornal da Cidade; vocês não pretendem parar por aí, não é?), vocês estão decretando que um anunciante é “corresponsável por associação”, mesmo que esse anunciante discorde do seu julgamento sobre o alvo. E “nenhuma ou quase nenhuma decide continuar” parece não se harmonizar muito bem com “Recebemos diversos ‘não’ como resposta”.

Também digno de nota é o entusiasmo imediato com que a iniciativa foi celebrada pela grande mídia e até por instituições como a OAB.1 Pouco mais de uma semana após a criação do perfil, o responsável pelo Sleeping Giants Brasil foi entrevistado pela Veja, a revista de maior circulação no país. E a revista publicou a seguinte manchete no Twitter: “‘Governo dissemina ódio com dinheiro público’,2 diz Sleeping Giants Brasil”.

SGB 1. Não encontramos nenhuma menção nos canais de comunicação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que corrobore a afirmação acima.

CN.  Errei. Referia-me ao presidente da OAB, como se vê adiante no texto do artigo.

SGB 2. [Governo não vai barrar propagandas em sites de fake news

CN. Aqui é preciso entender ao menos superficialmente como funcionam os sistemas de anúncios automatizados na internet. Escrevi um pequeno texto sobre isso, mas recomendaria aos interessados que buscassem informações mais detalhadas. Dito isso, quero observar que quando um anunciante bloqueia a exibição de anúncios em um site, seja em resposta a manifestação do Sleeping Giants Brasil ou por qualquer outra razão, não apenas o site perde a receita daquele anunciante, mas o anunciante perde a audiência daquele público. Nesse cenário, o governo federal está numa situação muito peculiar, pois ele deve tentar alcançar a todos os brasileiros, inclusive aqueles que frequentam sites de baixa qualidade ou francamente mentirosos. É claro que interromper anúncios em algumas dezenas de sites não vai reduzir significativamente o alcance da comunicação, mas quem decide quais sites? Pode parecer um comentário inocente ou que estou “passando pano”, mas basta ver a decisão provisória tomada pelo TCU com relação à publicidade do Banco do Brasil (também comentada no artigo que mencionei) para entender que não existe solução simples.

Muito bem, quase ninguém no Brasil sabe quem são esses “sleeping giants”, mas todos sabem o que é a revista Veja. E se um sujeito qualquer criasse um perfil anônimo chamado “O Dono da Verdade”? E se O Dono da Verdade acusasse a Veja de disseminar ódio? E se, em seguida, o Jornal da Cidade Online publicasse a manchete “‘A Veja dissemina ódio’, diz O Dono da Verdade”? Talvez não se possa afirmar que se trata de fake news, pois tanto a Veja como o Jornal da Cidade Online publicaram o que o Sleeping Giants Brasil e O Dono da Verdade disseram. Mas é algo, no mínimo, muito tendencioso.

SGB. Num hipotético arranjo, guardados os devidos paralelos, a hipotética Veja precisaria ser um reconhecido propagador de desinformação para receber o hipotético tratamento por parte do hipotético “Dono da Verdade” e ainda o hipotético Jornal da Cidade Online um veículo sem histórico de desinformação confirmado ou condenações na Justiça por tal prática.

CN. Não vejo a diferença, exceto nos nomes. O Dono da Verdade pode ser ter objetivos tão sinceros como os do Sleeping Giants Brasil. As situações são análogas. Um grande publicação endossando as ações, e por consequência, os julgamentos de ativistas anônimos sem qualquer histórico ou referência.

E o que dizer deste “tweet” do presidente da OAB, em que conclamou seus seguidores a apoiar a uma iniciativa que, guardas as medidas, promove linchamentos públicos, embora “virtuais”, motivados por denúncias anônimas julgadas por massas de militantes. Não é a mob rule o fim dessa estrada?

SGB. É bem-vindo e agradecemos o engajamento de todo e qualquer cidadão ou instituição, especialmente daqueles diretamente afetados por condutas desinformadoras e/ou caluniosas: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/justica-condena-site-indenizar-presidente-da-oab-por-conteudo-falso-24414057

CN. Espero neste ponto já ter tornado ao menos um pouco mais clara minha preocupação com as consequências que essa forma de ativismo pode ter para além do problema específico das fake news. Parece-me impróprio que o presidente da OAB promova essa iniciativa. Mas isso é algo que acho apropriado desenvolver aqui.

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