O problema da baixa confiabilidade das informações destinadas ao público não é novo, mas desde a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro para a do Brasil ganhou atenção inédita em ambos os países. Sob a justificativa de combate a práticas de desinformação, diversas iniciativas estão em curso, como a “CPMI das fake news” no Congresso Nacional, o “inquérito sobre fake news” no STF, incontáveis reportagens investigativas na grande mídia e ações de militantes notórios ou anônimos, como o Sleeping Giants Brasil. A qualidade da informação que chega ao público é um interesse social legítimo, embora nem sempre as soluções apresentadas sejam isentas ou imparciais. E o problema é de difícil solução.

Em 2 de junho, O Globo publicou reportagem sobre relatório da CPMI das Fake News, que identificou “2,065 milhões de anúncios pagos com verba Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) em sites […] que veiculam conteúdo considerado inadequado”, em apenas 38 dias. Os anúncios teriam sido veiculados não apenas em sites com notícias consideradas falsas, mas também em “12 sites com notícias sobre jogos de azar, sete que fazem ofertas de investimentos ilegais e quatro com conteúdo pornográfico”. Embora a reportagem fale em milhões de anúncios, refere-se a milhões de impressões de poucos anúncios, distinção que se tornará clara em seguida. O número total de sites em que os anúncios foram exibidos não foi informado, mas é razoável estimar que sejam milhares. Não nos interessam aqui os “741 canais do Youtube que foram removidos pela plataforma por descumprimento de regras”.
Monetização com Publicidade
À parte sites que vendem bens e serviços, como Amazon ou Americanas, a geração de receita de sites grandes e pequenos normalmente resulta da venda de conteúdo, na forma de assinaturas, downloads, etc., e de tráfego, na forma de impressões de anúncios. Muitos sites usam os dois mecanismos simultaneamente.
Antes da internet, a maior parte do espaço publicitário estava disponível apenas em grandes volumes agregados: em jornais e revistas impressos, em canais de televisão ou outros veículos de comunicação em massa. O anunciante buscava veículos que alcançassem seu público-alvo e tivessem o volume de circulação ou audiência desejados. Um anunciante poderia comprar espaço para um anúncio na Veja, por exemplo, e esse anúncio teria alcance de alguns milhões de impressões. Ou poderia buscar uma revista especializada e atingir um público mais delimitado, com apenas alguns milhares de impressões do mesmo anúncio. De qualquer maneira, o anunciante distribuía seus esforços —e suas verbas publicitárias— entre poucos veículos ou empresas de publicidade.
Hoje, com a disseminação da internet, há literalmente milhões de sites de todos os tamanhos nos quais se pode exibir anúncios. Embora os veículos tradicionais continuem sendo uma boa opção para a veiculação de grandes campanhas, a forma como se organizou a publicidade online permite a todo tipo de anunciante, mesmo o mais pequeno, promover seus produtos, serviços ou ideias. E permite a indivíduos e empresas de todos os tamanhos gerar receita com a venda de espaço publicitário em seus sites — monetizar seu tráfego, como se diz. Isso vale não apenas para blogueiros e pequenos sites de notícias, como também para portais comunitários, agremiações religiosas, entusiastas de floricultura e o que você puder mais imaginar.
Se o modelo publicitário tradicional é caracterizado por grandes anunciantes comprando grande quantidade de exibições ou impressões em grandes veículos, o modelo de anúncios online funciona de forma fragmentada e capilarizada. Dezenas de milhares de anunciantes compram quantidades mais modestas de impressões que são distribuídas entre dezenas de milhares de sites. É evidente que não seria possível chegar a esse nível de “democratização” da publicidade online se cada pequeno anunciante tivesse de negociar a compra de espaço em cada um desses milhares de sites individualmente, transações que em sua maioria não montam a mais do que alguns centavos, resultado de poucos cliques ou impressões que cada site isoladamente pode gerar. A solução encontrada para organizar esse enorme mercado fragmentado é o sistema de leilões automatizados, que unifica, por meio de algoritmos automatizados, a infinidade atores em um gigantesco pool de anunciantes e exibidores de anúncios.
Leilões Automatizados
A compra e venda de espaço publicitário na internet, nesse mercado, é realizada por meio de micro-leilões concluídos automaticamente por algoritmos cada vez que um anúncio é impresso em uma página online. De um lado, anunciantes inserem seus anúncios no sistema e estabelecem parâmetros de público-alvo como gênero, faixa etária, localização geográfica, entre muitos outros. De outro, administradores de sites instalam pequenos scripts em áreas designadas de seus sites, onde serão exibidos os anúncios.
Os anunciantes estabelecem valores máximos que estão dispostos a pagar por cada clique ou impressão para cada anúncio singular. Anunciantes empenhados em divulgar seus produtos ou marcas tendem a preferir comprar impressões; já aqueles que estão buscando gerar receita de vendas no curto prazo tendem a preferir pagar por cliques. De uma forma ou de outra, o mecanismo que define qual anúncio específico será exibido em cada espaço designado em cada página e o valor que será pago pelo anunciante para cada um desses eventos é o mesmo.

Quando uma página com áreas destinadas a anúncios é exibida a um usuário, os scripts carregados com ela avisam à plataforma de leilão de anúncios (por exemplo, Google ou Bing) que há oportunidade de exibir anúncios. A plataforma avaliará todos os parâmetros relevantes, como características do veículo, espaço disponível (por exemplo, banner horizontal de 800×320 pontos), perfil demográfico conhecido ou estimado do usuário, entre outros elementos, e comparará esses parâmetros com os parâmetros dos anúncios disponíveis para publicação. Os anúncios que forem compatíveis com todos os parâmetros entrarão em leilão pela oportunidade de exibição, prevalecendo o anúncio a que foi atribuído o maior valor aceitável para exibição nas circunstâncias prevalecentes naquele momento, valor definido antecipadamente pelo anunciante. Em linhas gerais, assim funciona o sistema. E tudo se passa numa fração de segundo.
Percebe-se que o mesmo sistema que torna possível a distribuição fragmentada de anúncios, e consequentemente de verbas publicitárias, torna muito difícil eliminar a divulgação de anúncios em sites que publicam informação duvidosa ou de baixa qualidade. Para eliminar o problema seria necessário analisar cada site individualmente. E surgiria outro problema, ainda mais complexo e perigoso: como se avalia e quem decide quais sites devem ser aprovados?
Impedir que anúncios sejam direcionados a sites de qualidade duvidosa é tarefa quase impossível. Isso só pode ser feito, e não perfeitamente, pela ampla eliminação de publicidade em todos os sites pequenos —ou seja, na maioria absoluta dos sites existentes— ou pela criação de uma enorme burocracia estatal ou privada que avalie e classifique cada anunciante. Sim, estamos falando de um grande órgão de censura. A primeira solução pune a todos indiscriminadamente, do propagador de fake news ao entusiasta de jardinagem e torna economicamente inviáveis milhares de pequenos sites que dependem da renda de anúncios para se manter no ar. A segunda, além dos enormes custos financeiros e burocráticos impostos aos participantes, cheira mal. Assim, ambas as abordagens criam mais problemas que do que resolvem, e ambas têm graves repercussões sobre a liberdade de expressão, sendo a criação de um órgão de censura apenas a mais visível. A criação de limites ou dificuldades à divulgação de produtos, serviços ou ideias, seja pela inviabilização econômica de inúmeros negócios, seja pela imposição de entraves burocráticos, teria como resultado a exclusão de milhares de pequenos participantes e a redistribuição das verbas publicitárias de volta aos grandes veículos.
Tentativas de Solução
O dilema não é desconhecido de quem pensa sobre o assunto. Por exemplo, decisão recente do TCU sobre a veiculação de anúncios do Banco do Brasil revela a dificuldade de encontrar solução satisfatória para o problema e o risco de que soluções apressadas causem mais dano. Atendendo a representação formulada pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) a respeito da veiculação de anúncios do banco em site acusado de propagar fake news. Entendeu o relator que o risco de que o banco terminasse por financiar sites indesejáveis justificava a suspensão de todos os anúncios em todos os sites, salvo poucas exceções, enquanto se busca solução mais satisfatória. Assim, determinou ao Banco do Brasil que “IMEDIATAMENTE SUSPENDA qualquer veiculação de publicidade em sites, blogs, portais e redes sociais, com a exceção dos veículos mencionados no item 70”, que exclui da determinação “os portais, sites, blogs e redes sociais vinculados a empresas concessionárias de serviços de radiodifusão, que por serem delegatárias de serviço público, já foram escrutinadas quanto aos critérios de interesse público da informação que veiculam. Excluo, ademais, aqueles vinculados a jornais e revistas que existam há mais de dez anos”. (grifos no original)
Veja que são poupados da proibição os veículos com mais de dez anos de existência, em uma abordagem indireta de avaliação da confiabilidade dos veículos —com a longevidade de uma empresa sendo fiadora de sua credibilidade—, que, se usada como método permanente levará a uma concentração da publicidade governamental nos grandes grupos da imprensa tradicional.

A suspensão vale até que a Controladoria-Geral da União “constitua Grupo Interinstitucional de Trabalho com apoio de outros órgãos, em especial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, da Secretaria de Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal, do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, bem como de entidades da sociedade civil, tais como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), a Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (ABRAJI), a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT), Associação Nacional das Editoras de Revistas (ANER), a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e o Instituto Palavra Aberta, para que, no prazo de 90 (noventa) dias, elabore normativo e manual de boas práticas, os quais devem vincular todos os órgãos do Governo Federal, até mesmo as empresas estatais, sobre certificação de sites, blogs, portais e redes sociais que poderão receber recursos públicos (monetização) via anúncios publicitários e congêneres”. (grifos no original)
Não me cabe discutir a decisão, mas não me parece possível encontrar boa solução por meio da criação de grupos de trabalho ou qualquer outro mecanismo que não resolva os problemas levantados acima. O sistema atual não é perfeito, mas não vejo como pode ser melhorado por decisões de gabinete.
Desinformação deliberada ou fake news, nos casos que constituírem crimes, devem ser denunciados e julgados segundo as Leis que os tipificam. Abordar o problema da desinformação pela via do seu financiamento ou da limitação do direito de anunciar ou de exibir anúncios não resolverá o problema e poderá causar dano a milhares de participantes honestos e inocentes de um sistema que ajudou a democratizar o acesso ao mercado publicitário, com grave prejuízo para a liberdade de expressão.
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