Artigos e Ideias

Punição Altruística e Sentido de Justiça

Em seu livro Thinking, Fast and Slow (ed. 2013), o psicólogo Daniel Kahneman examina a forma como a mente humana funciona e propõe um modelo teórico que a divide em dois sistemas. O Sistema 1 “opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e sem sensação de controle voluntário”. São as partes de nosso cérebro que nos fornecem não apenas a intuição natural da espécie como a capacidade de reação rápida adquirida pelo adestramento da experiência. O Sistema 2 “direciona atenção às atividades mentais intensas que a exigem, inclusive cálculos complexos. As operações do Sistema 2 são frequentemente associadas às experiências subjetivas de agência, escolha e concentração”1 (pp. 20-1). Embora essa descrição sintética possa, à primeira vista, sugerir uma reedição do id e ego freudianos, o modelo de Kahneman mais se assemelha a uma divisão de tarefas cuja função é simultaneamente processar experiências e otimizar respostas a estímulos internos e externos, como sugere esta passagem:

“O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossados pelo Sistema 2, impressões e intuições tornam-se crenças e impulsos tornam-se ações voluntárias.”2 (Kahneman p. 24)

O que o modelo descreve não é um conflito-equilíbrio entre atividades psíquicas conscientes e inconscientes, mas um mecanismo, que se poderia dizer pragmático, de coordenação da experiência, em que tarefas como respostas a situações parcialmente antecipáveis ou o armazenamento rotineiro de informação ficam a cargo de estruturas mentais quase sempre inacessíveis diretamente (Sistema 1), enquanto estruturas como as dedicadas ao processamento mais refinado de problemas novos e à negociação com o ambiente externo permanecem acessíveis a processos mentais conscientes, que podem ser dirigidos ou influenciados pelo indivíduo (Sistema 2). 

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Entre os diversos aspectos do comportamento humano estudados por Kahneman e apresentados no livro está a aversão a perdas. Esse sentimento ou instinto é algo que entendemos naturalmente e que podemos mesmo esperar como resultado necessário de um processo evolutivo que penalizaria indivíduos em que não se manifestasse. Particularmente interessantes são as relações sugeridas entre esse instinto, sobre cujo conteúdo não haverá grande disputa, e o sentido de justiça, certamente mais controverso. Após discorrer sobre uma série de experimentos em que ambos os sentimentos foram estudados, Kahneman apresenta algumas conclusões, entre as quais destaca-se esta, relacionada a um comportamento descrito como “punição altruística”:

“Impor perdas de forma injusta a outras pessoas pode ser arriscado, se as vítimas tiverem condições de retaliar. Além disso, experimentos mostraram que estranhos que observam comportamentos injustos frequentemente se juntam à punição. Neuroeconomistas (cientistas que combinam economia com pesquisa do cérebro) usaram aparelhos de ressonância magnética (MRI) para examinar os cérebros de pessoas ocupadas em punir um estranho por se comportar injustamente com outro estanho. Notavelmente, a punição altruística é acompanhada de um aumento de atividade nos “centros de prazer” do cérebro. Ao que parece, essa forma de manutenção da ordem social e de regras de justiça é sua própria recompensa. A punição altruística pode bem ser a cola que mantém as sociedades coesas. No entanto, nossos cérebros não são desenhados para recompensar a generosidade de forma tão confiável como para punir a maldade.”3 (Kahneman, p. 308)

Kahneman refere-se a experimentos em que se buscava observar como as pessoas reagem diante de ações percebidas como injustas. Segundo Kahneman, esses experimentos apontam para atividade em “centros de prazer” do cérebro quando os indivíduos examinados exercem “punição altruística”, o que indica que sentem prazer ao punir alguém que julgam haver cometido injustiça contra terceiros. A explicação parece intuitivamente razoável, mas imagino que pode haver outros fundamentos psicológicos que também motivariam a ação punitiva altruística ou alimentariam o prazer psicológico obtido por seu exercício.

Experimentos para medir percepções individuais subjetivas e em grande parte inconscientes, precisam ser desenhados de forma que examinadores externos possam compartilhar, com um mínimo de objetividade, parâmetros para avaliar e comparar o conteúdo dos sentimentos subjetivos observados. Em outras palavras, é preciso encontrar uma medida objetiva e compartilhada de concordância sobre o grau de justiça ou injustiça das situações subjetivas examinadas. 

Ocorre que o sentido de justiça particular a cada indivíduo não é diretamente traduzível numa escala universalmente aceita, e tampouco se fundamenta nos mesmos princípios e valores conscientes e —mais importante—, inconscientes. Aquilo que informa o sentido de justiça de um indivíduo não será necessariamente o que sustenta a percepção de justiça de outro.

O que experimentamos intimamente como sentido de justiça é —como são provavelmente todos os aspectos da psicologia humana— resultado da interação de uma profusão de elementos que concorrem para a formação de nossos valores, nossa personalidade, nosso “eu”, em última instância. Esses elementos incluem a constituição genético-psicológica do indivíduo (uma simbiose entre possibilidades existentes no pool genético da espécie e a constituição genética acidental do indivíduo), a cultura e a formação recebidas, o conjunto de experiências vividas, etc.

Ou seja, entre as bases fundadoras do sentido individual de justiça —quase em sua totalidade operando no nível do inconsciente—, estão, em variadas proporções e combinações, algum sentido instintivo de justiça, o conjunto de valores morais que, independentemente de sua origem, orientam o indivíduo em suas ações, e sua experiência pessoal. 

Embora explicações abrangentes da mente humana ainda sejam fundamentalmente especulativas, não se disputa que apenas uma pequena fração de tudo o que nela se passa é acessível à observação consciente. Mais que isso, não apenas grande parte das ações concretas realizadas pelo indivíduo têm origem no inconsciente, como também as justificativas que ele oferece a si mesmo para essas ações originam-se em processos mentais a que ele não tem acesso. Assim, mesmo o que é observável por nossos processos conscientes não é completamente compreensível a partir desses processos. Em outras palavras, as explicações que encontramos para nossas ações são, em boa medida, meras racionalizações a posteriori de atos cujos verdadeiros impulsos e motivações desconhecemos. E tais motivações poderão ter sido influenciadas por sentimentos nada altruísticos como, por exemplo, inveja ou desejo de vingança.

Um indivíduo que sofreu abuso sexual ou outro tipo de violência na infância poderá ter incorporado ao seu sentido de justiça um elemento importante de revolta ou vingança pela agressão sofrida, que poderia torná-lo mais inclinado a apoiar punições severas para determinados crimes do que outro indivíduo que não tenha sido vítima de agressões. Entretanto não é preciso buscar exemplos em traumas causados por violência. Um indivíduo que acredita intimamente que o mundo está dividido entre classes opressoras e oprimidas não terá seu sentido de justiça informado pelos mesmos valores de outros indivíduos que não veem o mundo dessa forma. Para aquele indivíduo, as situações sociais dos sujeitos e objetos da ação serão elementos agravantes ou atenuantes em seu julgamento sobre a justiça da ação.

Essa ponderação do julgamento com base na “identidade social” dos indivíduos pode ter múltiplas dimensões —muitas vezes sobrepostas e concorrentes—, individual ou socialmente definidas, e comumente amparadas em categorias definidoras de identidades ditas minoritárias ou oprimidas. Em casos extremos, o indivíduo submetido a essa visão de mundo pode ter seu sentido de justiça integralmente subordinado às categorias em que agrupa e rotula os outros indivíduos. Nesses casos, prevalece um estado psicológico que leva o sujeito a tomar cada indivíduo pelo grupo que lhe é atribuído, ou, como descreveu Olavo de Carvalho, a acreditar que “um homem é menos culpado pelos seus atos pessoais do que pelos da classe a que pertence”. (O Imbecil Coletivo, 5a. ed. p. 114)

Ademais, se o elemento motivador de uma ação supostamente altruística é a satisfação psicológica de uma necessidade pessoal —a ativação de “centros de prazer”—, não se pode propriamente dizer que a punição é desinteressada. Pode-se afirmar, a depender do caso, que seus efeitos são positivos ou socialmente desejáveis, mas não que são resultado de um desejo altruístico de fazer bem a terceiros.

Kahneman conclui que a punição altruística pode ser um elemento de coesão social, mas as especulações acima sugerem que, em determinadas circunstâncias, o impulso pela punição de terceiros a partir do sentido de justiça individual terá efeito deletério sobre a coesão social.

Em muitos indivíduos, o sentido de justiça estaria irreparavelmente corrompido, mascarando outra satisfação psicológica que não se funda numa concepção compartilhada de justiça, mas em desejos inconscientes que se transformam ou manifestam como demanda declarada de justiça. Esse mascaramento, essa fraude inconsciente, poderá produzir, a depender da constituição psicológica do indivíduo, comportamentos persistentemente auto-congratulatórios ou moralizantes. Em casos mais agudos, potencializados pela propensão humana a atribuir causalidade e agência a entidades abstratas, como categorias ou classes sociais, pode ser parte constituinte de uma personalidade paranoico-revolucionária que imprime no indivíduo o fervor de reformar os homens à sua semelhança.

Notas

1. “System 1 operates automatically and quickly, with little or no effort and no sense of voluntary control.
System 2 allocates attention do the effortful mental activities that demand it, including complex calculations. The operations of System 2 are often associated with the subjective experience of agency, choice, and concentration.” (Kaheman, pp.20-1)

2. “System 1 continuously generates suggestions for System 2: impressions, intuitions, intentions, and feelings. If endorsed by System 2, impressions and intuitions turn into beliefs, and impulses turn into voluntary actions.” (Kahneman, p. 24)

3. “Unfairly imposing losses on people can be risky if the victims are in a position to retaliate. Furthermore, experiments have shown that strangers who observe unfair behavior often join in the punishment. Neuroeconomists (scientists who combine economics with brain research) have used MRI machines to examine the brains of people who are engaged in punishing one stranger for behaving unfairly to another stranger. Remarkably, altruistic punishment is accompanied by increased activity in the “pleasure centers” of the brain. It appears that maintaining the social order and the rules of fairness in this fashion is its own reward. Altruistic punishment could well be the glue that holds societies together. However, our brains are not designed to reward generosity as reliably as they punish meanness. Here again, we find a marked asymmetry between losses and gains.” (Kahneman, p. 308)

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