Quando Luiz Inácio Lula da Silva venceu sua primeira eleição para presidente, Frei Betto afirmou que “Lula chega à Presidência graças ao movimento social articulado nos últimos 40 anos, no qual a pedagogia de Paulo Freire teve mais peso do que as teorias de Marx”. Não era exagero retórico. Frei Betto estava celebrando o sucesso da estratégia de ocupação de espaços iniciada ainda durante o regime militar, que levou a esquerda brasileira, capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores, a alcançar hegemonia cultural no Brasil. Poucos compreenderam na época, mas a eleição de Lula não era o fato central. Era, antes, consequência da hegemonia alcançada.
O objetivo de ocupação de espaços não se concluiu com a conquista da Presidência, no entanto. Ao contrário, ao chegar ao topo da política, o PT teve acesso a novos instrumentos para continuar avançando na conversão das massas a seu projeto de poder. Esse processo teve, desde o começo, duas frentes principais. De um lado, a mobilização e organização da militância, aliadas à formulação de estratégias de longo alcance e à consolidação de redes de apoio político, lançaram as bases formais ou visíveis do projeto petista.
De outro lado, o lento e persistente trabalho de preparação psicológica da sociedade forneceu a superestrutura cultural que permite ao partido — e à esquerda como um todo — contar com largo contingente de indivíduos “conscientizados”, ou seja, moralmente convencidos a usar suas funções ou prerrogativas para promover agendas “progressistas” — independentemente da legitimidade ou mesmo da legalidade de seus atos —, ao mesmo tempo em que minimizou a capacidade de resistência do resto da sociedade, aspecto talvez mais relevante do que o contingente de indivíduos completamente “conscientizados”, em sentido estrito.
Esse é um trabalho de décadas, que continua até hoje. A ocupação dos “espaços” sociais e institucionais por partidários da ideologia em que foram “conscientizados” permite às lideranças políticas petistas continuar exercendo influência efetiva sobre políticas públicas e ações práticas, independentemente de quem está formalmente no poder.
Dessa forma, as lideranças políticas associadas ao projeto “conscientizador” têm controle não somente sobre cargos de livre nomeação, nas circunstâncias em que podem escolher seus ocupantes, como também exercem controle ou forte influência sobre indivíduos nas mais diversas posições na estrutura permanente do Estado e da sociedade — como, por exemplo, servidores públicos ou intelectuais engajados. Isso permite ao partido manter influência sobre diversos aspectos do aparato institucional do Estado e da sociedade, mesmo em setores em que provisoriamente não ocupem cargos políticos. É assim que deve ser entendida a afirmação de José Dirceu de que “nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição”.
Assim, mesmo no curto período em que o PT não esteve no poder nas últimas décadas, o partido exerceu enorme influência sobre políticas e decisões em diversos âmbitos do aparelho estatal. Há relatos de servidores públicos que, aparentemente sem orientação externa, se organizaram para minar iniciativas dos governos então constituídos, em particular, o de Jair Bolsonaro.
Frei Betto, portanto, acerta ao dizer que a pedagogia de Paulo Freire foi fator central na chegada do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República. A lenta preparação cultural da sociedade levou o partido ao poder de fato, por meio da hegemonia cultural, e a hegemonia cultural levou Lula a ganhar sua primeira eleição presidencial.
Após consolidada, a hegemonia petista jamais se dissolveu, embora tenha sofrido revezes temporários causados por escândalos de corrupção ou pelas políticas desastrosas da presidente Dilma Rousseff. Nesse sentido, o curto período em que o país foi governado por Michel Temer e Jair Bolsonaro não reflete tanto uma alternância de poder, mas mero percalço no longo período de hegemonia petista.
E o que tem a pedagogia de Paulo Freire a ver com tudo isso? Paulo Freire, endossado pelas lideranças do PT — partido de que ele foi fundador — e em apoio a elas, defendia que a educação não só não podia ser neutra, como deveria ter como objetivo central a preparação política dos alunos para a revolução socialista, o que ele chamava de “conscientização”. A revolução socialista era, para Freire, o objetivo principal; e a educação era uma das ferramentas para empurrar a sociedade nessa direção. Freire não apenas propunha a apresentação de determinada visão de mundo aos estudantes, mas considerava obrigação moral do educador progressista adotar um papel militante em defesa do socialismo.
Em busca desse objetivo, Freire desenvolveu uma série de técnicas pedagógicas e justificativas filosóficas que permitiam aos professores, por um lado, dispor de ferramentas para introduzir conteúdos ideológicos de forma eficaz, e, por outro lado, dissipar dúvidas sobre o caráter ético da usurpação do processo educativo em prol de uma causa política particular.
Técnicas como a de “codificação/descodificação”, por exemplo, não são outra coisa senão mecanismos para a introdução de conteúdos ideológicos no processo de ensino. O problema ético não terá escapado a muitos professores engajados na pedagogia freiriana: não seria desonesto apresentar conteúdos ideológicos “codificados” para induzir os alunos ao “desvelamento” de uma realidade interpretada segundo a ideologia do professor? Freire ajuda esses professores/militantes recalcitrantes por meio da formulação de críticas aos sistemas pedagógicos não freirianos — que ele nunca se preocupa em descrever claramente — e de justificativas filosóficas que os amparam moralmente, como sua rejeição da neutralidade como referencial pedagógico.
A hegemonia petista na cultura brasileira foi reforçada com decretação de Paulo Freire como Patrono da Educação, naturalmente por iniciativa do Partido dos Trabalhadores. Essa “canonização” de Paulo Freire tem duas consequências principais. A primeira é constranger seus críticos, que podem ser acusados de “atacar” o patrono da educação. A segunda é o afastamento das discussões éticas sobre seus métodos. O professor militante pode se reconfortar na justificativa de que o que faz não é doutrinação ideológica, mas mera aplicação de um projeto pedagógico referendado e endossado pelo Estado.
Reverter esse estado de coisas não será possível apenas com bravatas e conspirações, mas com o mesmo lento e persistente trabalho de preparação da sociedade, desta vez para a construção de alternativas. E é preciso começar logo. The hour is getting late.
*Este artigo também está disponível em meu Substack.
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