Paulo Freire, que detém o honroso título de patrono da educação brasileira, construiu um sistema pedagógico cujo objetivo maior é a “conscientização” política dos alunos. Na terminologia freiriana, conscientizar o aluno significa torná-lo politicamente engajado na luta pela revolução socialista. No desenvolvimento de seu sistema, Freire apoiou-se em diversas premissas que o fundamentam ou justificam. Trato neste artigo de uma dessas premissas, que colabora com ambos os objetivos: a de que a educação não é e não pode ser neutra.
Freire afirma que a neutralidade na educação é impossível, pois o educador, seja por deliberação pessoal ou pela própria natureza do processo educativo, sempre transmite perspectivas ou valores embutidos nos conteúdos que ensina. Assim, “toda neutralidade proclamada é sempre uma opção escondida. É que os temas, insistamos, enquanto históricos, envolvem orientações valóricas dos homens na experiência existencial dos mesmos”.1 Segundo esse argumento, toda educação necessariamente incorpora e transmite, mesmo que parcial ou incompletamente, conteúdo ideológico, e tem como um de seus resultados a reprodução do sistema cultural prevalecente.
Freire não está errado no que concerne à contribuição da educação para a reprodução cultural da sociedade. Na verdade, esse é um de seus objetivos. A educação como fator de reprodução da cultura tem papel central na conformação do caráter nacional, na coesão social e nos valores comuns partilhados pela coletividade. Brasileiros são educados como brasileiros, com sua história, seus mitos, suas referências culturais, não como japoneses ou italianos. E essa reprodução da cultura é parte do que os torna brasileiros, não japoneses ou italianos.
Mas Freire não rejeita o processo de reprodução cultural em si. Ao contrário, ele defende que, depois de abolido o capitalismo e realizada a revolução socialista, uma das tarefas centrais do novo regime é a instauração da “revolução cultural”, em que os valores revolucionários são ativamente disseminados por meio de mecanismos que são essencialmente os mesmos que ele combate no período pré-revolucionário. O que Freire rejeita é a reprodução da sociedade atual, que ele condena e que almeja ver substituída por outra.
Ao aceitar a premissa de que a educação contribui para a reprodução da sociedade em que é conduzida, e que diversos aspectos de seus conteúdos e processos carregam princípios e valores ideológicos que mantêm certas referências culturais comuns, não precisamos concluir que a neutralidade no processo educativo como ideal a ser perseguido é algo indesejável. Na verdade, precisamos desembaralhar algumas ideias.
Ao tratar o conceito de neutralidade como um fenômeno unidimensional, Freire funde diversos aspectos de uma realidade complexa e embaralha subprocessos educacionais distintos. Se pensarmos na educação como um conjunto de processos que operam simultaneamente, alguns reproduzindo tradições e cultura, outros dedicados ao conteúdo acadêmico em sentido estrito, ainda outros de caráter mais subjetivo, ligados às preferências políticas, estéticas, religiosas, etc., de cada educador, veremos que há inúmeros componentes do processo educativo que comportam níveis diferentes de neutralidade. O ensino de matemática, por exemplo, pode ser absolutamente neutro. Já o de história terá de conviver com alguma medida de subjetividade e preferências pessoais de cada educador, independentemente de isso ser ou não ser desejável em abstrato.
Freire, no entanto, reduz todos esses processos a um fenômeno unidimensional, centrado na característica da educação como reprodutora da cultura, e conclui que a neutralidade na educação é impossível. E sendo a neutralidade impossível, todos estarão, de alguma forma, trabalhando por algum projeto ideológico, mesmo que de forma involuntária. Por isso, é imperativo que o educador “verdadeiramente democrático” assuma ativamente a postura de militante político e introduza sua própria ideologia no processo pedagógico. Freire apresenta essa conclusão como um imperativo moral desse educador “democrático”, pois está convencido de que sua visão de sociedade futura — que, para Freire, é a sociedade que será criada pela revolução socialista — é a que conduzirá os homens à liberdade e ao fim da opressão. Não militar pelo socialismo é ajudar a sociedade capitalista a continuar oprimindo os homens. Como Freire afirma,
[…] é neste sentido também que, tanto no caso do processo educativo quanto no do ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação e de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a atividade política. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, tanto mais percebemos a impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política. […]2
Entendemos finalmente como Freire captura o processo educativo para a promoção de sua agenda revolucionária. Partindo da crítica a uma neutralidade absoluta impossível, e que, como vimos, não é uma premissa que reflete a realidade, Freire dá uma rasteira no argumento e transforma a não neutralidade na razão de ser de sua pedagogia, instando os educadores a usar o processo educativo como arena de proselitismo político.
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