Assim que se tornou claro que o novo coronavírus causaria uma pandemia, discussões calorosas sobre como reagir ao flagelo ocuparam os principais foros de debate público. Enquanto hospitais e centros de pesquisa se apressavam em estudar o vírus e seus efeitos sobre a saúde humana, governos e organizações diversas discutiam políticas públicas e formas de coordenação de esforços. Logo surgiu uma importante divisão do debate em dois campos aparentemente incompatíveis, um que defendia ser preciso buscar um equilíbrio entre o combate ao vírus e os danos econômicos daí resultantes — “a cura não deve ser pior do que a doença”, diziam — e outro que via como prioridade única reduzir o impacto imediato da pandemia na saúde pública, o que supostamente salvaria o maior número de vidas — “empregos se recuperam depois; vidas, não”.
No Brasil, a imprensa, em sua maior parte, logo pendeu para o campo dos que defendiam a mitigação da pandemia a qualquer custo. A maior parte dos políticos adotou o mesmo discurso. Entre o resto da população, no entanto, as opiniões revelaram-se bem menos consensuais, havendo apoio quase unanime à mitigação extrema entre segmentos economicamente protegidos, como servidores públicos, e apoio mais reduzido a quarentenas ou outras restrições à circulação entre aqueles que dependem de atividade econômica continuada para sobreviver no curto prazo, em particular os autônomos e informais.

Perdidos na Encruzilhada
No início, lideranças políticas em quase todos os níveis transmitiram à população a mensagem de que isolamento social, quarentenas, máscaras, restrições à circulação e outras medidas seriam inconvenientes passageiros, que a curva epidêmica seria logo “achatada” e tudo voltaria ao normal em seguida. Não houve muito debate sobre como sairíamos das quarentenas, e apenas algumas vozes alertavam que o achatamento da curva não impediria a contaminação da maior parte da população, apenas retardando a propagação do vírus. Muitos alardearam essas medidas restritivas como sem fossem solução para o problema da contaminação pelo vírus, talvez sem compreender que seu objetivo era apenas evitar sobrecargas nos sistemas de saúde, como o que se viu na Lombardia ou em Nova Iorque, e ganhar algum tempo para estudar o comportamento do COVID-19 no corpo humano, o que, com sorte, levaria ao desenvolvimento uma vacina. Poucos apontaram na época que, sem vacina, o vírus continuará se propagando, mesmo com as restrições em vigor.
Passados seis meses desde que as primeiras medidas restritivas começaram a ser impostas no Brasil, com custo econômico acumulado crescente, a curva segue achatada e pessoas continuam morrendo, sem que se veja saída. As informações disponíveis indicam que podemos estar ainda longe da chamada imunidade de rebanho, que atenuaria naturalmente a propagação do vírus. Tampouco temos uma vacina, embora haja um vibrante noticiário sobre as pesquisas e testes em curso. E a euforia sobre pico da pandemia parece ter ficado para trás, sem que ele tenha jamais chegado. Afinal, achatamos a curva. E ninguém mais parece esperar pela volta à normalidade.
A grande quantidade de mortes causada pelo COVID-19 evidentemente gera comoção e pode induzir a reações emocionais e até desesperadas. Mas qualquer que seja nossa estratégia de reação, precisa apoiar-se na realidade, não em emoções ou medo. Na pandemia, nosso primeiro contato com essa realidade foi ver muitas pessoas morrendo por causa de um novo vírus que se propagava rapidamente pelo planeta. Isso foi, para muitos, suficiente para que se convencessem de que a única coisa certa a fazer seria conter a propagação do vírus a qualquer preço, nada mais importando. Partindo da premissa de que a vida tem valor inestimável, concluíram que medidas sanitárias rigorosas deveriam ser adotadas, pelo tempo que se fizesse necessário, sem considerações de ordem econômica, vistas mesmo como imorais por alguns. Como já apontado, argumentavam que não há solução para a morte, mas empregos podem ser criados de novo.
Esse argumento é apenas aparentemente sólido. Sua principal fragilidade reside no pressuposto implícito de que uma grave depressão econômica não tem efeitos sobre a saúde pública e, em última instância, sobre o número de mortes evitáveis em períodos subsequentes. Mas não é difícil compreender que a contração econômica faz encolher a arrecadação e a capacidade tributária, reduzindo os recursos disponíveis para construção e manutenção de hospitais e clínicas, programas de saúde preventiva, distribuição de remédios, entre muitos outros. Leva ao sucateamento, para usar a expressão popular. E isso leva a mortes.
Outro efeito de uma contração econômica aguda é a redução da renda real da população, o que tem impacto direto sobre padrões de vida, particularmente nas camadas mais pobres, com consequências que vão de desnutrição a violência. Assim, a realidade imediata das mortes causadas pelo COVID-19 é perfeitamente visível, mas não podemos ignorar que existe uma outra realidade, embora ainda encoberta, das mortes que ocorrerão no longo prazo, como resultado das medidas que adotamos agora. Que não sejamos capazes ver essas mortes futuras com clareza não pode ser desculpa para ignorá-las. São mortes que sobrevirão, uma realidade que existirá, mesmo que ainda não possamos descrevê-la precisamente.

Mudança de Discurso
De fato, com o passar do tempo, a pandemia continua seguindo seu curso, mais rapidamente em algumas regiões, de modo mais controlado em outras. E as consequências econômicas vão lentamente deixando de parecer abstrações sobre o futuro para tornar-se situações presentes. Já não é mais possível ignorar que a mitigação a qualquer preço não é o melhor caminho, ou que é insustentável no longo prazo. Muitos políticos e veículos de comunicação que investiram suas reputações no apelo sentimental das “vidas acima de tudo” vêm discretamente mudando seus discursos, buscando se dissociar dos custos econômicos gerados pelas decisões que promoveram.
A própria Organização Mundial da Saúde tem dado indicações cada vez mais enfáticas de que é preciso, sim, considerar as consequências econômicas e sociais das medidas de combate à pandemia. Isso não necessariamente significa, como muitos têm propagado, que teria havido mudança radical de posição da agência a respeito dos fatos, mas talvez que seus diretores tenham confiado demais no bom senso e na capacidade de discernimento das lideranças políticas locais. O maior erro da OMS pode ter sido enfatizar uma visão excessivamente médico-sanitária do problema, acreditando que esse seria seu papel, como organização especializada, e que caberia às lideranças políticas em cada país avaliar a situação também sob outros aspectos, no contexto de suas circunstâncias locais, e promover estratégias adequadas de reação.
Em defesa dos políticos, pode-se dizer que as circunstâncias não eram favoráveis a que se tomasse decisões diferentes. Havia histeria crescente, em grande parte fomentada pela imprensa. O desconhecimento dos efeitos da doença no corpo humano e da real velocidade de sua propagação infundiam medo e incerteza na população. Esse cenário era um forte estímulo para que políticos de menor visão ou coragem buscassem proteger sua posição, apostando em medidas de efeito imediato, em detrimento de políticas com resultados incertos e diferidos no longo prazo, ou seja, investindo tudo em medidas radicais de contenção do vírus. Mortes futuras são mais dificilmente atribuíveis a decisões presentes e a responsabilidade por elas é diluída entre diversos decisores subsequentes.
Uma Ciência das Pandemias
Quando o paciente entra no consultório, o médico que o examina tem sozinho a autoridade necessária para fazer um diagnóstico da situação e prescrever o curso de ação a ser seguido, que pode ser um tratamento específico, exames adicionais ou a referência a um especialista melhor capacitado para lidar com o caso em análise. Em outras palavras, para cada paciente individual, é o médico, com base em seu conhecimento da medicina, a autoridade competente para dizer o que deve ser feito.
Uma pandemia, no entanto, não é meramente uma grande quantidade de situações médicas singulares, mas uma mudança qualitativa do cenário sanitário, com repercussões em todos os aspectos da vida em sociedade. Medidas sanitárias de combate ao vírus terão impacto econômico significativo, conforme indicado acima, assim como haverá impacto importante se nenhuma medida for tomada. De fato, a propagação desenfreada do vírus também gera desorganização econômica, além de causar muitas mortes evitáveis.
Assim, a reação a uma pandemia não deveria ser guiada exclusivamente por considerações médicas ou sanitárias, como defendem os que dizem falar em nome da “ciência”. O combate deve ser orientado por uma visão abrangente da realidade humana, que inclui o aspecto médico dos casos singulares, o aspecto sanitário da contaminação das populações e também o impacto de longo prazo das decisões presentes sobre a saúde e a vida das pessoas.
A ciência que desejaríamos ter agora é uma ciência das pandemias, informada pela medicina, pela economia, e por tantos outros campos de conhecimento quantos forem necessários para entender não apenas onde estamos, mas onde estaremos no fim do percurso. Uma tal ciência precisaria, entre outras fontes, de uma nova área de estudos da economia, que aumentasse nossa capacidade de produzir contrações controladas e de compreender seus impactos. A economia sempre foi estudada da perspectiva do crescimento da produção e da distribuição de recursos. Precisamos estar também preparados para puxar o freio com controle e conhecimento das consequências. E essa ciência das pandemias, que não existe porque temos a sorte de não haver pandemias frequentes, serviria para indicar a nossas lideranças os caminhos para lidar com o problema. Na falta dela, precisamos, acima de tudo, de líderes que tenham visão da realidade e não se entreguem ao caminho mesquinho das conveniências imediatas.
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Excelente texto, César.
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